Há mais ou menos um ano, conheci este texto que me encantou. É a página 65 do livro “Cadeira de Balanço” de Carlos Drummond de Andrade. Sendo hoje é o último dia para declarações de renda, quem sabe, assim como o poeta, nos descobrimos sonegadores e resolvemos declarar rendimentos de bens de que tenhamos a posse, como se nos pertencessem? Eu posso declarar o prazer de ouvir uma orquestra de passarinho, de desenhar caras conhecidas em gordas nuvens brancas, de sentir o cheiro de manjericão colhido do meu jardim, de andar por aí, de ver, de ter faro pra distinguir o que vale a pena do que tenta parecer que vale. Em qual rubrica? Que tal Bens Incalculáveis?.
(Carlos Drummond de Andrade)
Sr. Diretor do Imposto de Renda:
O senhor me perdoe se venho molestá-lo. Não é consulta: é caso de consciência. Considerando o formulário para declaração de imposto de renda algo assimilável aos textos em caracteres cuneiformes, sempre me abstive religiosamente de preenchê-lo. Apenas dato e assino, entregando-o, imaculado como uma virgem, a um funcionário benévolo, a quem solicito: “Bote aí o que quiser”. Ele me encara, vê que não sou nenhum tubarão, rabisca uns números razoáveis, faz umas contas, conclui: “É tanto”. Pago, e vivemos in love, o Fisco e eu. Mas este ano ocorreu-me uma dúvida, a primeira até hoje, em matéria de renda e de imposto devido. O bom funcionário não soube resolvê-la, ninguém na repartição o soube.
Minha dúvida, meu problema, Sr. Diretor, consiste na desconfiança de que sou, tenho sido a vida inteira um sonegador do Imposto de Renda. Involuntário, inconsciente, mas de qualquer forma sonegador. Posso alegar em minha defesa muita coisa: a legislação, embora profusa e até florestal, é omissa ou não explícita; os itens das diferentes cédulas não prevêem o caso; o órgão fiscalizador jamais cogitou disso; todo mundo está nas mesmas condições que eu, e ninguém se acusa ou reclama contra si mesmo. Contudo, não me conformo, e venho expor-lhe lealmente as minhas rendas ocultas.
A lei manda cobrar imposto a quem tenha renda líquida superior a determinada importância; parece claro que só tributam rendimentos em dinheiro. A seguir, entretanto, a mesma lei declara: “São também contribuintes as pessoas físicas que perceberem rendimentos de bens de que tenham a posse, como se lhes pertencessem.” E aqui me vejo enquadrado e faltoso. Tenho a posse de inúmeros bens que não me pertencem e que desfruto copiosamente. Eles me rendem o máximo, e nunca fiz constar de minha declaração tais rendimentos.
Esses bens são: o Sol, para começar do alto (só a temporada de praia, neste verão que acabou, foi uma renda fabulosa); a Lua, que, vista do terraço ou da calçada da Avenida Atlântica, diante do mar, me rendeu milhões de cruzeiros-sonho: as árvores do Passeio Público e do Campo de Santana, que alguém se esqueceu de cortar; a montanha, as crianças brincando no play-ground ou a caminho da escola; em particular, três meninos que vêm e vão pelo ar, tão moleques e tão rendosos para este coração; as mangas, os chocolates comidos contra prescrição médica, um ou outro uísque sorvido com amigos, com calma calmíssima; os ventos de três poetas, um francês, um português e um brasileiro; certos prazeres como andar por andar, ver figura em edições de arte, conversar sem sentido e sem cálculo, um filmezinho como Le petit poison rouge, em que o gato salva o peixe para ser gentil com o canário, indicando um caminho aos senhores da guerra fria; e isso e aquilo e tudo mais de alta rentabilidade... não em espécie.
Estes os meus verdadeiros rendimentos, senhor; salários e dividendos não computados na declaração. Agora estou confortado porque confessei; invente depressa uma rubrica para incluir esses lucros e taxe-me sem piedade. Multe, se for o caso; pagarei feliz. Atenciosas saudações.
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