Certo é que há um "internetês" que de tão pobre causa náuseas...mas de repente, encontramos jóias como esta que descobri por acaso no site
http://aaldeia.net/.
"...existe uma paz que não é a paz das coisas,..."
As asas
(Paulo Geraldo)
A vida é breve, a alma é vasta:
ter é tardar
(Fernando Pessoa, Mensagem).
Um homem demora muito tempo a fazer-se. Não somos como
aqueles passaritos que se soltam na imensidão dos céus
pouco tempo depois de terem visto a luz. Trazemos em nós
uma semente que demora a germinar, que gasta nessa
tarefa muitos anos de agitação e silêncio. É assim,
decerto, porque está destinada a dar um fruto muito
maior que o do pássaro.
Temos, sem dúvida, uma alma: raciocinamos, temos sede de
conhecer, somos capazes de amar e de escolher. Um animal
come necessariamente, se tiver fome e o alimento estiver
ao seu alcance. Um homem, nas mesmas circunstâncias,
pode não o fazer. Porque, por exemplo, resolveu fazer
dieta. Ou porque escolheu dar o seu alimento a outro que
tinha mais fome do que ele. Tem a possibilidade de viver
de acordo com outros critérios.
Há muitos séculos que chamamos alma a esse não-sei-quê
que faz parte de nós e nos permite viver num plano
superior ao das coisas simplesmente materiais. É como se
possuíssemos uma espécie de asas.
Sabemos apreciar um sofá confortável, um sono reparador,
um bom bife com batatas fritas. Mas precisamos de mais
do que isso. E damos por nós a perguntar "porquê?", ou a
discutir ideias. E descobrimos que há qualquer coisa -
não feita de células ou moléculas - que nos comove e nos
atrai numa paisagem, num gesto de heroísmo, num poema,
na música.
Há uma beleza e um bem que não são feitos de nada que se
possa tocar. Que não estão nas coisas, embora as coisas
nos levem a eles. Aquilo que é apenas material -
acabamos sempre por o descobrir - sabe a pouco e não nos
enche as medidas. Mas leva tempo a chegar aí.
Leva tempo até percebermos, por exemplo, que existe uma
paz que não é a paz das coisas, mas sim uma harmonia
interior que resulta de um comportamento correcto. E que
é esse o género de paz que nos interessa; que não nos
basta aquela paz que é feita somente de ausência de
vento ou de guerra.
Um homem tem de crescer não apenas corporalmente.
Deve atingir uma envergadura que ultrapassa em muito o âmbito
das coisas materiais. Deve fazer-se... homem.
É um caminho já de si longo. Ainda por cima, cometemos
com frequência a burrice de termos medo de ganhar asas.
De largar um pouco esses outros bens - mais pequenos,
mais baixos, mais... animais. É olhar e ver como muitas
vezes nos afadigamos correndo atrás da posse de bens
materiais e dos prazeres que não são senão para o corpo
e de que também gostamos. Ter, gozar, curtir, comprar,
comprar... Ter, ter, ter.
Mas sucede que o ter e o comprar e o curtir - usados de
um modo exagerado, como fazemos - nos atrasam.
Perdemos tempo.
Quem vive obcecado com a posse de prazeres e bens
materiais não tem acesso aos prazeres da alma. Passa ao
lado do bem e da beleza e do amor. Porque escolheu um
nível para a sua vida - o mais cómodo - e escolher uma
coisa é sacrificar as outras. Não é possível alcançar o
topo da montanha e, simultaneamente, permanecer deitado
à sombra lá em baixo.
Portanto, apressemo-nos. Pois, como escreveu o poeta,
ter é tardar...