segunda-feira, janeiro 29, 2007

As Asas


Certo é que há um "internetês" que de tão pobre causa náuseas...mas de repente, encontramos jóias como esta que descobri por acaso no site http://aaldeia.net/.

"...existe uma paz que não é a paz das coisas,..."

As asas

(Paulo Geraldo)


A vida é breve, a alma é vasta:

ter é tardar

(Fernando Pessoa, Mensagem).



Um homem demora muito tempo a fazer-se. Não somos como

aqueles passaritos que se soltam na imensidão dos céus

pouco tempo depois de terem visto a luz. Trazemos em nós

uma semente que demora a germinar, que gasta nessa

tarefa muitos anos de agitação e silêncio. É assim,

decerto, porque está destinada a dar um fruto muito

maior que o do pássaro.

Temos, sem dúvida, uma alma: raciocinamos, temos sede de

conhecer, somos capazes de amar e de escolher. Um animal

come necessariamente, se tiver fome e o alimento estiver

ao seu alcance. Um homem, nas mesmas circunstâncias,

pode não o fazer. Porque, por exemplo, resolveu fazer

dieta. Ou porque escolheu dar o seu alimento a outro que

tinha mais fome do que ele. Tem a possibilidade de viver

de acordo com outros critérios.

Há muitos séculos que chamamos alma a esse não-sei-quê

que faz parte de nós e nos permite viver num plano

superior ao das coisas simplesmente materiais. É como se

possuíssemos uma espécie de asas.

Sabemos apreciar um sofá confortável, um sono reparador,

um bom bife com batatas fritas. Mas precisamos de mais

do que isso. E damos por nós a perguntar "porquê?", ou a

discutir ideias. E descobrimos que há qualquer coisa -

não feita de células ou moléculas - que nos comove e nos

atrai numa paisagem, num gesto de heroísmo, num poema,

na música.

Há uma beleza e um bem que não são feitos de nada que se

possa tocar. Que não estão nas coisas, embora as coisas

nos levem a eles. Aquilo que é apenas material -

acabamos sempre por o descobrir - sabe a pouco e não nos

enche as medidas. Mas leva tempo a chegar aí.

Leva tempo até percebermos, por exemplo, que existe uma

paz que não é a paz das coisas, mas sim uma harmonia

interior que resulta de um comportamento correcto. E que

é esse o género de paz que nos interessa; que não nos

basta aquela paz que é feita somente de ausência de

vento ou de guerra.

Um homem tem de crescer não apenas corporalmente.

Deve atingir uma envergadura que ultrapassa em muito o âmbito

das coisas materiais. Deve fazer-se... homem.

É um caminho já de si longo. Ainda por cima, cometemos

com frequência a burrice de termos medo de ganhar asas.

De largar um pouco esses outros bens - mais pequenos,

mais baixos, mais... animais. É olhar e ver como muitas

vezes nos afadigamos correndo atrás da posse de bens

materiais e dos prazeres que não são senão para o corpo

e de que também gostamos. Ter, gozar, curtir, comprar,

comprar... Ter, ter, ter.

Mas sucede que o ter e o comprar e o curtir - usados de

um modo exagerado, como fazemos - nos atrasam.

Perdemos tempo.

Quem vive obcecado com a posse de prazeres e bens

materiais não tem acesso aos prazeres da alma. Passa ao

lado do bem e da beleza e do amor. Porque escolheu um

nível para a sua vida - o mais cómodo - e escolher uma

coisa é sacrificar as outras. Não é possível alcançar o

topo da montanha e, simultaneamente, permanecer deitado

à sombra lá em baixo.

Portanto, apressemo-nos. Pois, como escreveu o poeta,

ter é tardar...

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